Depoimento de Canhoto a Zuza (José Eduardo Homem de Mello)

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Os Choros dos Chorões (RCA CAMDEN 107.0267)

Os 3 grupos de músicos aqui reunidos têm uma curiosa interligação, além do fato de se constituírem em três casos dos mais expressivos do choro brasileiro: é que, gravando sob diferentes denominações, eles se prolongam um no outro. Isto é: a formação básica do grupo que acompanha a dupla Pixinguinha e Benedicto Lacerda é a mesma do que seria algum tempo depois o regional do Canhoto; e que também estaria presente em numerosas gravações de Jacob Bittencourt. Essa, digamos, base de sustentação, aliás a mais sólida base harmônica e rítmica do choro brasileiro, é constituída por músicos que continuam vivos e em atividade: Dino (violão 7 cordas), Meira (violão 6 cordas), Canhoto (cavaquinho), Gilson e/ou Jorginho (ritmo/pandeiro). Essas eminentes figuras na música brasileira tocavam juntas no regional de Benedicto Lacerda, considerado tacitamente o maior flautista brasileiro de sua época. O próprio Canhoto me contou como foram se juntando as peças: 

"Em 1932 eu entrei para o conjunto Gente do Morro de Benedicto Lacerda. Nós fizemos uma viagem para Campos em 34 com Noel Rosa e lá, o pessoal começou a perguntar se a gente não andava de tamanco. Sabe como é, gente do morro, tu já viu, não é? Aí, quando voltamos pro Rio, o Benedicto resolveu mudar o nome do conjunto. Bobagem botar Gente do Morro. 

Nessa época o conjunto era assim: no violão, Macrino que já morreu há muito tempo e não era um violão muito forte. O outro era mais fraco ainda, porque era comediante, o Coringa, um mulato. Em 35 eles saíram e entraram o Carlos Lentini e um violão do Rio Grande do Sul, o Nei Orestes que já morreu, e mais o Russo do Pandeiro. 

Nós inauguramos a Rádio Tupi em 35, e em 36 fomos à Argentina com o Chico Alves e a Alzirinha Camargo. Foi no mês de agosto, e ninguém tinha coragem de tomar banho frio de dia. Eu ficava num apartamento com o Benedicto. E esse gaúcho, o Nei, ficava no outro com o Russo e o Lentini, que também bebia bem. Quando voltamos em setembro, ele já estava doente, com os 2 pulmões afetados, e eu internei-o no Hospital de São Sebastião em fevereiro. Foi quando o Dino veio para o conjunto: fevereiro de 37. Em julho o Lentini saiu e aí veio o Meira que já tinha trabalhado na Casa de Caboclo com o conjunto do Jararaca e Ratinho. O Gilson pandeirista veio na época dos discos do Pixinguinha. Antes era o Popeye. Os demais eram Dino, Meira, eu e Benedicto. A idéia da dupla Pixinguinha e Benedicto Lacerda foi do Benedicto porque o Pixinguinha já estava esquecido, ninguém falava mais dele. As músicas eram só do Pixinguinha. E o Benedicto combinou com ele: fazia os discos mas entrava nas parcerias. Muitas pessoas meteram o pau no Benedicto, mas não tinham razão, ele foi franco. O Pixinguinha tinha comprado uma casa de uns alemães em Ramos, tinha dado 5 contos e nunca mais deu nada. Eles iam tomar a casa do Pixinguinha. Ai o Benedicto foi no Vitale, arranjou dinheiro para acabar de pagar. 

Os discos foram feitos de bossa. Não tinha nada escrito. Em 49 naquela campanha do governador de São Paulo Adhemar de Barros, o Benedicto e o Herivelto Martins viviam por lá fazendo a campanha dele. Eles ganharam até um avião do Adhemar. Ai o Benedicto não aparecia mais no programa, e eu disse pra turma: 'Olha, vamos cair fora daqui, vamos aproveitar que o Gilberto Martins é o diretor da Mayrink Veiga e é muito amigo meu.' Foi em junho de 50, o contrato terminava em 31 de dezembro. O diretor artístico da Tupi era o Almirante. Eu disse pra ele: 'Vamos deixar o Benedicto.' - Mas você está maluco? - Olha, eu vou até vender banana mas não fico assim não. Ele que é o dono do conjunto não aparece, é multado. 

Eu estava de olho no Altamiro que tocava no conjunto do Rogério Guimarães, e vi que ele ia longe.Falei com Altamiro que veio para o conjunto, e o Gilberto convidou o Luiz Gonzaga. Nós já tinhamos gravado com o Luiz Gonzaga no tempo do Benedicto. Foi o Luiz que trouxe o Orlando Silveira para São Paulo; ele tocava no regional do Rago. Aqui não se usava flauta com acordeon em regional quando ele veio. Nós tínhamos um programa na Mayrink Veiga que era muito ouvido: Noites de Brasileiros. Nessa época, o diretor artístico da RCA era o falecido Vitório Lattari e eu assinei um contrato com ele para gravar. Nós estreamos na Mayrink em março de 51 e gravamos o primeiro disco em 13 de abril, GRACIOSO e MEU LIMÃO MEU LIMOEIRO, onde eu fiz o arranjo da segunda parte. O Orlando é quem geralmente fazia os arranjos. 

Em 55 o Altamiro saiu, formou uma bandinha e entrou um flautista chamado Ataíde que ficou só um ano porque na hora de tocar dava uma tremedeira nele; eu fiz tudo pra ele, gravamos choros dele, mas ele tremia. Aí me apresentaram o Carlos Poyares que tem um ouvido de ouro mas não sabe música e não quis aprender. Ele ficou no conjunto até 1965 quando a Rádio Mayrink Veiga fechou. Hoje estão todos aposentados pela Mayrink: eu, Altamiro, Meira, Dino. Nós também participamos de muitas gravações do Jacob. Quando ele formou o Época de Ouro, depois que a Mayrink Veiga fechou, o Dino foi fazer parte do conjunto, mas muitas das gravações foram feitas antes, ainda no tempo da rádio aberta: DOCE DE COCO, TURBILHÃO DE BEIJOS, TENEBROSO, GOSTOSINHO, VALE TUDO,... 

O primeiro violão de 7 cordas que conheci foi o Tute que tocava no conjunto do Pixinguinha. Depois de uns tantos anos no conjunto, é que o Dino botou a sétima corda. Acho que foi em 55. Ficou muito melhor, com mais um baixo. O Dino é o maior violão de regional. Olha que eu trabalhei com muitos violões, com Gorgulho, Jaci Pereira, Nei Orestes, mas como o Dino não teve." 

O próprio Dino me disse depois: 

"Comecei a sentir necessidade de incluir notas mais graves que não tinham no violão 6 cordas. Achei que ia ficar muito mais bonito. E pensei: Se o falecido Tute tocava, acho que posso tocar também. E assim comecei a usar a sétima corda. Por necessidade. E ficou muito melhor." 

Aí perguntei ao Meira, que se chamava Jaime Florence, a razão desse apelido: "É que meu pai me chamava carinhosamente de Jaimeira. E como meus irmãos menores não sabiam falar direito, diziam só Meira. E assim ficou." 

Agora preciso dizer alguma coisa sobre as músicas deste disco. DISPLICENTE, onde chama a atenção o contraponto do saxofone, foi o último disco da série de 15 feita por Pixinguinha e Benedicto Lacerda, tendo sido gravado em 7 de julho de 1950. O primeiro foi 1 x 0, em 12 de junho de 1946, também aqui incluído. "FOGO NA ROUPA era um choro muito ligeiro e o Gilson pandeirista não gostava de tocar porque a gente chegavca na Rádio Mayrink Veiga às 7 horas para o programa que começava às 9. Ele ia dormir tarde e quando tinha que botar fogo na roupa logo cedo, ficava logo queimado." Foi o comentário do Canhoto. 

DOCE DE COCO é a única do disco com acompanhamento de orquestra. O pistonista é Maurílio. Reparem na 3a. parte de ANDRÉ DE SAPATO NOVO, o contraponto de Pixinguinha. É um de seus momentos mais inspirados entre todas as gravações que fez com Benedicto. CUIDADO VIOLÃO é do paulista José Toledo que trabalhou muito com Cipó. Foi escrito especialmente para o conjunto de Canhoto, e o seu modo menor dá mesmo uma sensação de garoa paulistana. Há um interessante jogo de pergunta e resposta entre a flauta e o violão. O conhecido BREJEIRO está apresentado como convém a esse tanguinho com resquícios de polca: bem amaxixado. A certa altura da primeira parte, há uma invulgar variação de Jacob para o modo menor. Um procedimento Às vezes usado por certos arranjadores, Cesar Camargo Mariano por exemplo. Em NAQUELE TEMPO, o tema da primeira parte é exposto inicialmente pelo próprio sax de Pixinguinha e não pela flauta como costumava ser nos discos da dupla. A presente gravação do célebre NOITES CARIOCAS não é a mesma do LP "Era de Ouro" (CALB 5123). Esta, é uma versão em que a parte do acordeon é executada por um trombone, Nelsinho. 

Depois que foi formado, em 1966, o conjunto Época de Ouro manteve basicamente a mesma formação: Jacob (bandolim e líder), Dino (violão 7 cordas), Cesar Faria (violão 6 cordas), Jonas (cavaquinho), e Gilberto e/ou Jorginho (pandeiro e ritmo). Notem o desenho dos violões em GOSTOSO COMO ELE SÓ. Tanto a segunda como a terceira parte são formadas por uma melodia ascendente ou descendente muito simples mas que funciona pelo contraste com a primeira parte. 

A mais antiga composição deste disco é FLOR Do ABACATE, numa versão diferente da do LP "Assanhado" (CALB 5096). Aqui é possível distinguir melhor o trabalho dos violões em breques precisos. Jacob faz uma sensacional passagem de preparação para o retorno à primeira parte. ENIGMÁTICO e PITORESCO eram ambos os lados A e B do mesmo disco 78. No primeiro, as semicolcheias (uma divisão muito freqüente em chorinho) da melodia são executadas com perfeição na região grave dos violões; reparem no final na dominante do tom. Após uma elaborada introdução, a cativante melodia de PITORESCO é intercalada com breques dos violões. Na última exposição do tema da primeira parte, há uma modulação para três tons acima. 1 X 0 intitulado em louvor da vitória do selecionado brasileiro no campeonato sulamericano frente ao uruguaio, é um choro de difícil execução para a flauta. Conforme me disse Canhoto, "Carlos Poyares não conseguia executá-lo. Mas não foi só ele: até o Eugênio Martins da orquestra do Municipal levou a parte para casa, estudou e depois disse para Orlando Silveira: 'Não posso tocar não'." Porém Benedicto toca de tal forma relaxado que que não demonstra essas dificuldades, superando=as como um equilibrista que executa uma proeza sorrindo calmamente.As duas últimas faixas do disco são também dois dos mais conhecidos choros do repertório de qualquer conjunto: VALE TUDO e LÍNGUA DE PRETO, em suas versões originais. 

Finalmente uma menção sobre o reprocessamento utilizado neste disco. As gravações foram submetidas a um equalizador gráfico que "trouxe de volta" alguns sons que não se ouviam nos velhos discos 78, ao mesmo tempo que procurou eliminar, sem prejudicar a fidelidade, freqüências indesejáveis. Ainda assim, devido ao intervalo de tempo entre a mais antiga e a mais recente gravação, será possível notar diferenças técnicas, que no entanto são mais que amplamente recompensadas pela maestria com que esses músicos executam obras primas do choro brasileiro. 

José Eduardo Homem de Mello (ZUZA)